“Não terias qualquer poder sobre mim, se não te fosse dado de cima” (Jesus perante Pilatos, João 19.11)
Jesus viveu num mundo cruel e irracional. A injustiça, desigualdade, violência, racismo e tirania do nosso tempo não são novidades. Muitos dos primeiros discípulos – assim como o próprio Jesus – foram vítimas diretas do conluio entre Estado e autoridades religiosas.
Provavelmente, naqueles dias, política e religião fossem os assuntos mais comuns entre as pessoas. Principalmente porque eram temas praticamente indissociáveis. O tão aguardado Messias, por exemplo, era uma figura tanto política quanto religiosa, que restauraria a independência e a glória da nação de Israel, assim como traria o coração do povo de volta pra Deus. Havia entre eles muitos grupos político-religiosos (fariseus, saduceus, zelotes, herodianos, essênios), tentando, para dizer o mínimo, emplacar sua narrativa.
Portanto, talvez não seja imprudente afirmar que houvesse polarização, debates acalorados e reações violentas no meio do povo naqueles dias. Diante desse provável cenário, Jesus foi capaz de reunir num mesmo grupo um extremista revolucionário, um funcionário corrupto do Estado opressor e alguns racistas, sem falar no tesoureiro traíra!
O que eles tinham em comum, então? Além de serem judeus e de acreditarem que Jesus era o Messias - embora o entendimento disso fosse filtrado por suas crenças e ideologias - talvez um grande anseio por mudanças. Agora, vocês podem imaginar esses caras conversando sobre o que achavam que estava acontecendo? “Vamos pedir ao Mestre que nos permita sentar um à sua direita e outro à sua esquerda no seu Reino?”, diriam Tiago e João, os mesmos que perguntaram se Jesus queria que eles fizessem cair fogo do céu para destruir os samaritanos (cf. Lucas 9.54 e Marcos 10.35-37). Que bando!
Motivado por amor e compaixão, Jesus criticou abertamente a hipocrisia, a arrogância e o racismo dos líderes religiosos, assim como o amor ao dinheiro e a opressão dos ricos e poderosos sobre os pobres e marginalizados. Os confrontos, as críticas e as denúncias de Jesus não eram movidas por ódio aos hipócritas, poderosos, racistas, ricos, opressores, injustos, mas por amor aos fracos, oprimidos, discriminados, marginalizados, hostilizados, escravizados… Isso faz toda a diferença!
Ele foi duro muitas vezes, mas nunca hostil. A todos com quem interagiu, não apenas com seus discípulos, mas com qualquer pessoa que se aproximava dele - fossem escribas, fariseus, sumo-sacerdote, ricos, publicanos, mulheres, leprosos, soldados, governador ou rei – ele tratava de uma maneira que desafiava o senso comum.
Embora Jesus não tivesse intenções políticas, é óbvio que suas ações e declarações tinham implicações políticas. Suas intenções, ao que parece, eram muito mais ambiciosas. Ele não pregava contra os métodos, mas contra a própria essência da sociedade. Não era um grito à mudança de comportamento, mas um chamado ao arrependimento - uma mudança de mente – que só era possível “nascendo de novo”. Portanto, ele não pode ser confundido com um revolucionário, pois suas ideias não precisam eliminar o status quo para prevalecer, mas subsistem quase como um poder paralelo. “Arrependam-se, pois o Reino dos céus chegou” (Mateus 4.17).
A sobrevivência desse Reino não está condicionada a nenhuma realidade política ideal. Não precisa de uma teocracia, de uma democracia, de maioria evangélica, de bancada evangélica e, nem mesmo, de presidente evangélico. A História já deixou isso claro. Aliás, a Igreja nasceu sob um governo tirano e, enquanto a fé cristã se espalhava pelo mundo romano fazendo florescer comunidades vibrantes de seguidores de Jesus - que eram perseguidos, aprisionados e martirizados -, os Apóstolos instruíam os cristãos a orarem e a se submeterem às autoridades governamentais (Rm 13.1-7; 1Tm 2.2; Tito 3.1-2 e 1Pe 2.13). O Imperador nesta época se chamava Nero, figura capaz de deixar até Hitler e Stálin escandalizados!
Mas o que Jesus tinha a dizer sobre o Estado? Qual de suas denúncias ele endereçou à Roma? Além do embate com Pilatos, no qual ele explicita sua opinião sobre a autoridade do então governador, até onde se pode perceber, a única vez em que expressa sua atitude em relação às autoridades governamentais é no famoso “A César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Lucas 20.25). Aqui há uma clara tentativa da parte dos seus detratores de fazer uma armadilha, forçando-o a um “sim” ou “não”, que o poria sob a mira do Estado ou das milícias anti-imperialistas.
Há quem diga que a resposta de Jesus demonstrava sua neutralidade a respeito das ações governamentais, ou que fossem o embrião da ideia de separação entre Igreja e Estado. Isso parece duvidoso. Embora sua resposta tenha calado seus oponentes – talvez por falta de discernimento -, as palavras de Jesus eram uma crítica contundente a César.
O culto ao Imperador era uma prática comum no paganismo romano. E a lealdade absoluta a César era requerida de todos os seus súditos. O que Jesus parece fazer aqui é estabelecer os limites dessa lealdade ao Imperador, ao afirmar que César tem o direito sobre os impostos, mas não sobre a adoração. “Adore o Senhor, o teu Deus, e só a ele preste culto.” (Lucas 4.8).
Portanto, a submissão às autoridades – instruída pelos próprios Apóstolos – é relativa quando compromete nossa submissão a Deus. Nas palavras do próprio Pedro: “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens!” (Atos 5.29).
Mas aqui é o século XXI e o Brasil é uma democracia! Governantes eleitos pelo povo, liberdade de culto, de imprensa, de associação, de opinião, de manifestação, de ir e vir. O Império das Leis! Não é crime criticar o Presidente, o Congresso, As Forças Armadas e nem mesmo o STF. Pelo contrário, num país democrático, espera-se que seus cidadãos estejam atentos às posturas e ações dos governantes, legisladores e juízes, cobrando, denunciando, protestando e/ou apoiando.
Protestar nas ruas, nas redes sociais e exigir que sejam justos, cumpridores da lei, que falem a verdade é legítimo e nada disso, em si, significa desrespeito às autoridades constituídas. O Estado Democrático tem seus mecanismos legais para lidar com aqueles cujas manifestações e ações extrapolam os limites da crítica.
A segurança de uma democracia reside no respeito às diferenças e no equilíbrio das tensões entre suas forças políticas. Um democrata é aquele que dá boas-vindas ao controverso, ao contraponto, ao debate, à pluralidade, e fica com o pé atrás diante de qualquer hegemonia político-ideológica. Democracias estão sujeitas a movimentos pendulares; se suas instituições forem sólidas o suficiente, o pêndulo tende a se equilibrar.
Mas justamente porque neste momento nosso pêndulo está nos extremos, estamos assistindo no Brasil uma guerra de narrativas e um show de desinformação, talvez, sem precedentes. Uma guerra onde maus e bons são definidos pela opinião política que defendem; onde crentes têm sua espiritualidade julgada com base no candidato em quem votaram na última eleição. Amizades de longa data vêm sendo desfeitas e famílias e igrejas sendo divididas!
Vemos cristãos se referindo a autoridades governamentais, eclesiásticas e a seus pares com termos chulos; vemos palavras como “nazista”, “fascista”, “comunista”, “genocida”, entre outras, carregadas de significado histórico, sendo usadas em escala industrial para xingar aqueles de quem se discorda, em claro desrespeito à memória e à dor daqueles que foram de fato vítimas dessas atrocidades.
As redes sociais se transformaram num palco de oráculos, arrogância e hostilidade. E o que se espera daqueles que dizem seguir aquele que “tem as palavras de vida eterna” é que não se unam a esta turba ególatra!
Num cenário de arrogância, como devem responder os humildes de espírito? Num cenário de guerra, como devem responder os pacificadores? Num cenário de linchamentos, como devem responder os misericordiosos? Num cenário de julgamentos como devem responder os que têm fome e sede de justiça? Num cenário de militância cega como devem responder os mansos? Num cenário de calúnias como devem responder os limpos de coração?
Não temos autoridade - nem a pretensão - de exortar a todos os cristãos do Brasil. Mas há alguns anos recebemos a incumbência de liderar direta e indiretamente o pequeno rebanho de missionários e voluntários da Cru Brasil, pessoas a quem servimos com muita alegria. É a vocês que dirigimos nossa exortação.
Vocês abraçaram o propósito de glorificar a Deus dedicando sua vida para ajudar a cumprir a Grande Comissão e não há causa mais prioritária do que essa para um seguidor de Jesus. Por isso, toda ação ministerial de cada um de nós deve servir a este propósito. E nenhuma ação pessoal – ainda que privada – deve criar obstáculo para o cumprimento desse propósito. Sua lealdade a este chamado deve estar acima de qualquer lealdade política ou ideológica.
Como cidadãos, nós temos a liberdade de nos posicionar como quisermos, política e ideologicamente: “Tudo me é permitido”. Contudo, como embaixadores de Cristo e como missionários da Cru Brasil, devemos saber que “nem tudo convém... nem tudo edifica... não deixarei que nada me domine” (1Co 6.12; 10.23), afinal, “nenhum de nós vive apenas para si” (Rm 14.7). Não falamos apenas em nosso nome e não representamos apenas a nós mesmos.
Com isso, não estamos afirmando que um missionário da Cru não pode ou não deve expressar suas opiniões, participar de discussões, criticar quem quer que seja, protestar contra ou a favor do governo etc. Mas estamos dizendo que, provavelmente, em determinadas ocasiões, não convém fazê-lo; ocasiões que pedem uma postura diferente de alguém com sua influência, de alguém que ministra a uma audiência plural e que serve numa organização interdenominacional. Neste caso, nos cabe buscar sabedoria e discernimento para julgar tal conveniência.
Entretanto, todos passamos por momentos em que nos faltam discernimento e bom-senso. Por isso, nós devemos ter a liberdade – e a responsabilidade – de confrontar uns aos outros em amor quando isso acontecer.
É nesse espírito que, à luz desse momento de acirramento político, ofereceremos algumas orientações e diretrizes que possam ajudá-los a assumir uma postura que convém e edifica e a não se deixar dominar por este espírito de beligerância.
Este texto é fruto de muita reflexão, conversas, leitura e oração. Infelizmente, não conseguiremos mencionar as fontes (além da Bíblia) nas quais nos inspiramos. Então, se vocês se depararem com uma ideia ou frase que pensem já ter lido em algum outro lugar, é provável que tenham lido mesmo. No entanto, os únicos textos citados literalmente são os bíblicos. Qualquer outra semelhança é mera coincidência (fora esta última frase).
Caso tenham uma sugestão muito útil sobre este tema, fiquem à vontade para compartilhar com todos nós. Ou se gostariam de fazer um comentário de qualquer natureza sobre este texto, estamos abertos e ansiosos para escutar.
Que o Senhor continue nos conduzindo a tudo que redunde em glória para Ele!
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